Coisas estranhas com poucas façanhas
Sentimentos mistos com o que se viu da quarta temporada de Stranger Things, até agora (o Volume 1). Por um lado, a qualidade técnica está melhor do que nunca (fala-se em 30 milhões de dólares por episódio, é bem melhor que os gastem), a atenção ao detalhe da época continua lá (é um dos trunfos da série) e os actores, incluindo as novas adições ao elenco, continuam a cumprir - mesmo que alguns já pareçam demasiado velhos para as idades dos personagens que interpretam, uma condição conhecida em Portugal como Síndrome Morangos Com Açúcar. E, depois de três temporadas que não pareceram tanto séries mas filmes cortados às postas (especialmente a última), parece que os Duffer conseguiram finalmente fazer uma série em que os episódios, singularmente, têm um princípio, um meio e um fim*. Ou seja… uma série.
*Também ajuda não ter visto a série de uma assentada, ir intervalando por vários dias ou com outras séries.
Por outro lado, a duração dos episódios assusta - e com razão. Uma média de 77 minutos por episódio na primeira parte, e ainda faltam as quatro horas que vão sair a 1 de Julho (ao todo são 13 horas para 9 episódios). A verdade é que não há grande motivo para isto: há episódios que podiam ser facilmente cortados a meio (o excelente episódio 4, por exemplo, é um deles) ou re-editados. Não só para cortar material, mas para limitar os núcleos de personagens que seguimos em cada um dos episódios (como fez Game of Thrones).
Episódios grandes e maus cortes resultam em problemas de ritmo: há cenas que parecem “inchadas”, ou que me põem a pensar na morte da bezerra, que me desligam completamente daquilo que estou a ver. Um bom ponto feito no Twitter é que os intervalos e os limites das slots horárias obrigam a cortes, que vai ao encontro daquilo que sempre disse em relação ao digital: lá porque as slots horárias não existem, não quer dizer que os episódios possam durar para sempre (com espaço, naturalmente, para excepções - que devem ser isso mesmo, excepções). Nota-se que os Duffer não quiseram cortar - há partes de histórias que são desinteressantes e outras que podiam ser simplificadas, em vez de se esticarem incessantemente, ou linhas que podiam ficar por dizer.* Para uma série que se gaba de ser “mais adulta”, “mais negra” e “mais inspirada no horror” a cada temporada que passa, fartam-se de confirmar verbalmente o que se tornou óbvio cinco segundos antes. Toda esta falta de cortes leva a um mau ritmo e, para mim, à impossibilidade de ver mais do que dois episódios seguidos (ou, em alguns casos, manter a atenção em algumas cenas).
*A Maya Hawke é muito vítima disto - depois de um sólido trabalho na temporada passada, a personagem dela quase que se transformou numa má tentativa de fuga do arquétipo da damsel in distress - ou seja, numa segunda Nancy.
Esta temporada tem exactamente dois finais de episódios que resultam e que estão bem executados: o do último episódio deste volume (há que manter as pessoas agarradas para a estreia de Julho, não é?) e um outro, que parece ser o final do primeiro acto da temporada, e cujo timing está tão bem conseguido que parece saído de um acordo divino (wink wink). Todos os outros são cliffhangers que se tornam totalmente irrelevantes quando podemos avançar logo para o episódio seguinte - que foi o que fiz, muitas vezes, só para ver a conclusão da cena e parar de ver imediatamente antes do genérico. Seriam bons ganchos se a série fosse lançada semanalmente - mas os Duffer já sabem como é que a Netflix lança as coisas, e podiam ter feito algo diferente.
Pelo que leram até agora, parece que não gostei do que vi desta temporada. Gostei! Até gostei bastante. Mas quase nada daquilo que gostei é novo para a série, e muito daquilo do que não gostei são mudanças de formato que, muito simplesmente, são experiências que não resultaram tão bem (algumas podiam resultar se o lançamento dos episódios fosse feito de outra forma). Ao fim de três anos de interregno, Stranger Things regressou muito igual a si mesma: megalómana e revivalista, no bom sentido, mas com menos charme do que das outras vezes. Quem gosta muito da série vai continuar a gostar, quem não gosta e já viu não vai ver. Mas espectadores não vão faltar à maior série da Netflix.
As três primeiras temporadas e os primeiros sete episódios da T4 de Stranger Things estão na Netflix. Os dois últimos capítulos da T4 estreiam a 1 de Julho, e a série irá terminar na quinta temporada.
Algumas notas com spoilers (e elogios) depois desta imagem.
- Os tais $30M/episódio notam-se bem quando Millie Bobby Brown interpreta a Eleven ainda em criança, com um novo passo na tecnologia de rejuvenescimento digital e deepfakes. Ajuda ter imensas imagens de referência com alta qualidade e boa iluminação, mas a série faz alguns planos algo complexos para este tipo de efeito (e que nem outras produções que fazem utilização regular desta tecnologia, como vários dos mais recentes capítulos de Star Wars, ou qualquer coisa que venha da Marvel, conseguiram atingir). É preciso ser extremamente picuinhas para encontrar imperfeições neste ponto, e por uma vez não irei contribuir para isso.
- Os dois finais de que falei são, obviamente, o épico com a "Running Up That Hill", que ajudou a catapultar a música de Kate Bush de volta aos tops (e no top 10 da Billboard pela primeira vez!); e a origin story do Vecna, o One, um twist razoável que, mesmo com os artigos que foram surgindo ao longo da semana a falar disso mesmo (que não li, mas surgiam na timeline, e estragam a experiência - é mais um dos muitos motivos para não gostar da forma como a Netflix parece forçar o bingewatching), ainda adicionou ali o pormenor do Henry Creel. Giro.
- Onde é que há excessos? Sobretudo em dois pontos: o subplot da Rússia podia ter sido bem mais resumido, e o do grupo da Califórnia fica pouco justificado depois da saída da Eleven. E, como já referi, nas constatações óbvias.
- As novas adições ao elenco são fixes. Já faltava o amigo janado, o metaleiro sensível e a miúda mais gira do liceu que acaba por se dar bem com ele. Só é pena ela morrer logo na estreia. São clichés, sim, mas são bem executados.
- Fui só eu que senti uma satisfação nociva ao ver a Eleven a espetar com a roda de um patim no nariz da bully? Já agora, mais um elogio para a MBB a interpretar uma Eleven mais crescida mas que continua a carregar com ela todas as dificuldades inerentes ao seu processo de crescimento: não só o trauma acumulado das experiências no laboratório, mas as dificuldades nas interacções sociais e na fala, e até como a mudança para fora de Hawkins (onde, como se viu na T3, conseguiu ser bem integrada na vida normal de uma adolescente) provocou uma certa reversão na evolução dela. Está tudo nos detalhes.
- A curta exploração da sexualidade do Will pareceu-me atirada ao pontapé para o meio da série. A verdade é que o Will sempre meu pareceu pouco relevante no grupo após a primeira temporada, nunca necessariamente “um dos” mas “mais um”. Era uma história que podia ter merecido mais alguns minutos durante esta parte, e que os Duffer já disseram que será abordada nos próximos dois episódios.